O Carteiro e o Retrato

Naquela época, ter um cartão, com fotografia e carimbos de entidades oficiais era coisa que dava uma certa importância. Sim, porque quando aparecia alguém de Lisboa ou de outra cidade ao abrir a carteira e exibia um ou outro cartão, deixava o pessoal da aldeia extasiado.

“Naquela época, ter um cartão, com fotografia e carimbos de entidades oficiais era coisa que dava uma certa importância. Sim, porque quando aparecia alguém de Lisboa ou de outra cidade ao abrir a carteira e exibia um ou outro cartão, deixava o pessoal da aldeia extasiado. A importância, o respeito e a admiração, era ainda maior se o cartão tivesse as cores da República. Razão pela qual o jovem Carlos, já pensando no futuro, considerava que ter o cartão da segurança social, era um marco histórico na sua vida. Certamente, iria passar a ter mais e melhor aceitação no grupo dos mais velhos, que é sempre o desejo dos (demasiado) jovens.”

 

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Corria o mês de abril do ano de 1953 quando numa pequena aldeia do interior do país, nasce uma criança do sexo masculino a quem foi dado o nome de Carlos. Todos os dias o carteiro passava, sempre à mesma hora, na aldeia para deixar as cartas na taberna do Chico. Este era o local do ponto de encontro dos habitantes da aldeia, os homens juntavam-se ao fim do dia para conversar e beber um copo de vinho, as mulheres iam abastecer-se de alguns produtos de mercearia e à noite e aos domingos os mais jovens juntavam-se para jogar às cartas ou ao dominó. Era o Chico que, mesmo sendo pouco letrado, lia e escrevia as cartas a muitos dos habitantes da aldeia que não sabiam ler nem escrever.

Mas, voltando à casa onde uma mãe acabava de dar à luz o seu terceiro filho ajudada pela ti Conceição, a “parteira” que assistia a todos os nascimentos na aldeia e em outras na zona, no preciso momento em que se ouvia o barulho de uma motorizada. Era o carteiro! Este chegava, mais coisa menos coisa, por volta das 10 horas, ficando assim registado na memória dos presentes aquela hora como sendo a que o “pimpolho” veio a este Mundo.

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Nessa época os relógios eram coisa rara, quase um luxo de que só os mais abastados desfrutavam. Os outros, a maioria, guiavam-se pelo sol ou, conforme a distância e o vento, contavam as badaladas do sino da igreja.

 

O tempo foi passando e o Carlos, como muitas outras crianças das aldeias deste país, foi crescendo com as dificuldades económicas que, naquela altura afetavam a generalidade da população. Desde muito jovem, mesmo durante a escola primária, começou a trabalhar para ajudar a família. Ao completar os 14 anos, já experiente no trabalho duro e mal pago, precisou de tirar fotografias para o cartão da segurança social que uma fiscalização não anunciada tinha determinado.

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Chegado o dia de ir ao fotógrafo com o qual foi antecipadamente combinado, não fosse este ausentar-se para outras paragens. Acordou cedo, mal tinha pregado o olho, tal era a excitação e expectativa que a ida ao fotógrafo lhe estava a causar. Arranjou-se com esmero, vestiu a roupa que a avó lhe tinha oferecido, umas calças azuis escuras, uma camisa branca e a imprescindível gravata. Demorou tempo até conseguir colocar a gravata e fazer o nó como a avó lhe tinha ensinado, mas, no final, ao mirar-se no pequeno espelho que havia em casa achou que o resultado era muito bom. Agora só faltava a comprovação, que as fotografias certamente lhe iriam trazer, de parecer um rapaz feito.

Acompanhado pelo pai, foram a pé até à vila que distava uns 6 km da aldeia. A sua preocupação enquanto percorria o caminho de terra batida, pois pela estrada era mais longe, era caminhar com muito cuidado e fora dos “escavados” trilhos empoeirados para não sujar os sapatos que na noite anterior estivera a polir com creme “Viriato”.

Finalmente chegaram ao estabelecimento “Fotografia Lopes”. Entraram para uma pequena sala onde o balcão de madeira, com uma aba que abria sobre dobradiças por onde os clientes entravam para o interior, separava o atendimento público do estúdio fotográfico.

O Carlos não parava de olhar para os retratos expostos nas prateleiras que preenchiam uma das paredes. Fotografias de raparigas vestidas com a roupa do domingo, o que as tornava ainda mais bonitas, de senhoras vestidas e penteadas como ele nunca tinha visto, noivas, magalas fardados e um que o deixou com uma pontinha de inveja pelas divisas que ostentava.  Oh! como deveria ser fácil àquele rapaz arranjar uma bonita namorada, se calhar, até uma das poucas que andavam a estudar.

Como gostaria de já andar na tropa, de vestir uma farda como aqueles rapazes das fotografias e, se também tivesse umas divisas …, isso é que seria bom! Se assim fosse, quase de certeza, que na aldeia todos o iriam respeitar e admirar. Embalado por este sonho, despertou com a voz fria e altiva do Sr. Lopes que, do outro lado do balcão, se fez ouvir com o: “Então vamos lá ao retrato porque tenho outra freguesia para atender”.

Entrou para outra sala onde havia uma grande máquina fotográfica um candeeiro que achou muito estranho e uma cadeira à frente da máquina fotográfica. Depois de arranjar o cabelo com as mãos não fosse estar desalinhado, sentou-se sério e muito direito na cadeira, o Sr. Lopes tirou-lhe o retrato. Saíram depois do pai pagar, o Sr. Lopes meter o dinheiro numa gaveta e de lhes dar um papel que dizia que as fotografias estariam prontas dali a 15 dias.

Ansioso por ter nas mãos o retrato, os dias custavam a passar. Contava os dias que faltavam até chegar o tão esperado 15º dia. Outra vez, outra noite mal dormida. Levantou-se cedo e lá foi quase correndo o tempo todo ao longo dos 6 kms que o separavam da vila. Cumprimentou o Sr. Lopes e o seu ajudante, o Zé, um rapaz de uns vinte e poucos anos que, pelo facto de ter algumas dificuldades cognitivas, muitas vezes atrapalhava-se e quase cortava mal as fotografias impressas, motivo pelo qual o Sr. Lopes o repreendia com frequência e o observava com toda a atenção não fosse estragar o trabalho já pronto. O Carlos retirou o papel do bolso das calças e entregou-o ao Sr. Lopes que mandou o Zé ir buscar as fotos e coloca-las dentro de uma capa plástica dobrada ao meio, preta com o nome, morada e telefone gravado em letras douradas.

Sem se conter, mal tem nas mãos a capa com as fotografias, abre-a e observa as fotos. Que desilusão! Fica branco sem pingo de sangue na cara. De tal forma que o Sr. Lopes lhe pergunta: O que se passa rapaz? Não estás bem ou não gostas do retrato? Ele reponde-lhe que não, que está tudo muito bem. Saiu cabisbaixo e já na rua voltou a olhar para as fotografias, ali estava ele numa fotografia que mostrava um rapazinho de 14 anos e não, como ele tanto desejava, um jovem de 17 ou 18 anos.

O tempo passou, agora recorda com alguma nostalgia, este episódio e a vontade que tinha de ser gente crescida, aceite e respeitado pelos mais velhos.

Tal como diz Kafka “ Vi-me forçado a aquecer-me com um fogo que ainda não tinha começado a procurar.” Toda a minha vida procurei incessantemente fazer como se já fosse e acabei sendo.

O tempo dos retratos a Preto e Branco

A fotografia nasceu a preto e branco para documentar momentos que, localizados no tempo, no espaço e em ambientes sociais específicos, contam histórias de épocas passadas. Não se esqueça que por trás de cada imagem há uma história de vida real.

Com o advento da TV e mais recentemente o uso massificado das redes sociais como o facebook e principalmente o instagram, as imagens são a forma mais comum de comunicar.  Uma imagem transmite uma mensagem de forma rápida, ultrapassa barreiras linguísticas e culturais, atrai o olhar e desperta emoções.

Sem dúvida que as imagens exercem um grande poder na área da comunicação, gozam de um papel especial no estímulo das nossas emoções, convidam o nosso olhar e despertam os nossos sentidos. De força tão intensa, é normal que induzam diferentes interpretações de acordo com as vivências de cada um e com o contexto em que são observadas.

A fotografia tal como hoje a conhecemos, resultou de um conjunto de descobertas que foram feitas ao longo de muitos anos por físicos e químicos que estudaram e associaram as condições de iluminação e de produtos químicos para conseguirem obter e fixar uma imagem num suporte físico. A técnica de criação de imagens por meio de exposição luminosa, fixando-as numa superfície sensível foi sendo aperfeiçoada. A primeira fotografia conhecida data de 1826 sendo atribuída ao francês Joseph Nicéphore Niépce. 

A busca na descoberta de materiais duráveis, eficazes e na aceleração no processo de revelação, foi também um desafio para fazer perdurar no tempo imagens que mostram momentos específicos, que ajudam a construir memórias e a conhecer o passado.

A fotografia surge a preto e branco, popularizou-se como produto de consumo a partir de 1888, no entanto a possibilidade de ter uma máquina fotográfica pessoal, estava limitada a poucas pessoas, ia-se ao fotógrafo “tirar o retrato”.

Hoje, com a revolução tecnológica, surge a fotografia digital de acesso e uso generalizado, com qualquer telemóvel se obtêm fotografias coloridas e com boa resolução que se partilham nas redes sociais.

A fotografia nasceu a preto e branco para documentar momentos que, localizados no tempo, no espaço e em ambientes sociais específicos, contam histórias de épocas passadas. Deixe assomar recordações e deixe correr a imaginação, com as fotografias que neste artigo apresentamos. E conforme diz o ditado se “Uma imagem vale mais que mil palavras!” também é verdade que por trás de cada imagem há uma história de vida real.

Mas não vamos terminar por aqui, abrimos os nossos baús empoeirados e descobrimos fotos que trouxeram lembranças de acontecimentos vividos na primeira pessoa e por quem nos era próximo, familiares, amigos vizinhos e outros, memórias de conversas tidas ao serão em volta da lareira ou nos terraços nas noites quentes de verão.  Entre memórias, depoimentos, experiências vividas e imaginação vamos partilhar um conjunto de histórias que pretendem ilustrar tempos muito difíceis que se viviam em Portugal no século XX até à década de 70. Esteja atento e siga-nos para não perder nenhuma das histórias reias (?) e/ou imaginadas(?) que iremos publicar.

História reais de famílias reais

Casamento nos anos 50 numa aldeia portuguesa (1954)  – Os noivos e a família, a noiva à porta da igreja, o noivo à porta da igreja, o pormenor do sapato da noiva e do bouquet e o acessório típico do lenço branco no bolso do casaco do noivo.

Coleção de postais antigos a desejar felicidades aos noivos

Os penteados de mulheres nos anos 50 – O cabelo era apanhado, feita uma trança que enrolada formava um carrapito.

 

Retrato típico da época tirado pelo distinto fotógrafo da aldeia – Menina sentada em cima de uma mesa. Vestido e penteado característicos dos anos 50.

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A moda – Os vestidos, os fatos e os suspensórios

Os eventos religiosos determinavam festividades em que as jovens se vestiam a rigor com vestidos brancos, luvas e véus, parecendo noivas!

 

As raparigas mais novas levavam para a igreja o missal, um livrinho que lhes permitia acompanhar o desenrolar das cerimónias religiosas durante a missa.

 

Os fatos domingueiros – Aos domingos, a ida à igreja para assistir à missa, era uma prática comum. Cada um vestia o seu melhor fato, os chamados fatos domingueiros e convivia-se em família.

O ditado da época “Gordura é formosura“ – levava as mães a alimentarem os seus filhos de forma a ficarem bem gordinhos 

Normalmente as crianças nasciam em casa acompanhadas por parteiras. Muitas vezes, eram mulheres cujo conhecimento resultava apenas da prática. Na minha casa, por onde passaram várias gerações, existia um quarto que era designado por “quarto das dores” pois era aí que as mulheres davam à luz.

 

Recuando mais um pouco, situa-mo-nos nos finais dos anos 20 – na foto seguinte, um evento festivo, onde podemos apreciar as roupas, os chapéus das senhoras e dos cavalheiros, com o lencinho branco surgindo em todos os bolsos dos casacos.

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No tempo dos retratos a preto e branco aprecie os penteados ondulados e o traje característicos bem no início do século XX.

Para terminar esta pequena reportagem, a preciosidade que encontrámos nos nossos baús antigos, um almanaque que data de 1907.

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Pode-se voltar ao tempo do preto e branco, mas pode-se colorir com as cores do arco-íris esse mundo preto e branco, porque as cores que já existiam no passado estão agora vivas no presente. Criámos a nossa história inspire-se e crie também a sua.

“Só morre aquele que não viveu” – Frida Khalo

O olhar penetrante e desafiante que vemos nas fotos e pinturas de Frida Kahlo – Em exposição no Centro Português de Fotografia – Porto

Como não admirar Frida Kahlo!

Frida Kahlo continua a inspirar-nos como mulher e como artista que soube transformar a dor em arte!

Por isso a morte é tão magnífica. Porque não existe, porque só morre aquele que não viveu.”

“Cuatro Campanadas” Frida Kahlo

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No centro histórico da bela cidade do Porto, próximo da Torre dos clérigos, surge um imponente edifício, outrora Cadeia da Relação, onde se encontra instalado “O Centro Português de Fotografia”. Aqui está patente uma exposição a não perder, “Frida Kahlo – As suas Fotografias” até ao dia 4 de novembro de 2018. O preço do bilhete é oito euros e reverte para a Associação Salvador, que apoia pessoas com deficiência motora.

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Frida Kahlo, uma mulher ímpar que nos inspirou a escrever um artigoPés, para que os quero, se tenho asas para voar, e que nos continua a inspirar no amor pela vida, na atitude alegre e exuberante, na coragem na superação da dor, na arte e na liberdade de espírito. Tal como Frida, vivamos sem medo de ser quem queremos ser, de ser livres…

 

O que mais me marcou desta visita à exposição foi, sem dúvida, o documentário que revela momentos relevantes da sua vida e algumas das suas mais importantes obras. O documentário mostra a influência do pai Guillermo Kahlo um emigrante alemão, homem culto e liberal, um fotógrafo que gosta de se autofotografar (já havia selfies…ahahah). A mãe, mestiça mas com sangue espanhol, era muito religiosa, transmite-lhe o gosto pelos trajes indígenas e o orgulho pela identidade Mexicana. O marido Diego Rivera, com uma personalidade muito própria, corpulento diria que, à imagem do conto de fadas francês da Bela e do Monstro, fisicamente parece o mostro junto da figura delicada de Frida. Diego era um pintor reconhecido mas que soube apreciar Frida e sua arte. Engana-a com a sua irmã, Frida sofre e veste-se de acordo com os seus sentimentos.

Sou uma mulher prostrada no caminho da dor e da amargura, uma mulher cheia de dores e sofrimentos físicos. Também a alma e os sonhos me doem, os meus sentimentos estão tão danificados como a minha coluna.”

Sobre ela Diego disse:

Eu recomendo-a, não como esposo, mas como admirador entusiasta do seu trabalho amargo e terno, duro como ferro e delicado como a asa de uma borboleta, adorável como um sorriso, profundo e cruel como o que há de mais implacável na vida.

Fica na memória a imagem do olhar penetrante e desafiante que vemos nas suas fotos e pinturas. Uma postura sedutora, sem vergonha das deformações físicas do seu corpo que se agravam com o tempo (1907 – 1954). Um médico que depôs no documentário afirma que numa escala de 1 a 10 a dor física de Frida se situava, grande parte das vezes, no 10.

Não estou doente, estou destroçada …mas estou feliz por estar viva, desde que possa pintar.”

A fotografia fazia parte da sua vida manipulava-as com recortes e desenhos. Nas salas contíguas à da projeção do documentário, podemos apreciar um conjunto de fotografias que foram encontradas na “Casa Azul” a casa na Cidade do México, onde a pintora mexicana passou grande parte da sua vida e, que agora, é o Museu Frida Kahlo, conhecido como Casa Azul. As fotografias mostram pedaços da sua vida, as suas origens, o seu corpo dilacerado, amores e desamores, amigos e outras personagens que de algum modo tocaram a vida desta mulher.  Frida envolta em ligaduras é fotografada por um amante depois do seu divórcio. Mostra-nos que, apesar da dor, continua uma mulher sedutora.

 

Saiba mais em:

Centro Português de Fotografia

Associação Salvador

 

Paulo Gaspar Ferreira e o projeto In-Libris

“O brilho que temos nos olhos vem-nos do prazer de transmitir aprendendo, desmultiplicando…”
In-Libris – “Este é um lugar onde habitam livros antigos e pessoas.”

Na senda da partilha de locais e experiências ímpares, apresentamos Paulo Gaspar Ferrieira e o projeto In-Libris

Sempre me deixei encantar por olhar as coisas belas. A In-Libris é o modo de as fazer. Do livro antigo à fotografia, da agricultura à escrita, da música à natureza, sempre cuidei de fazer o que vou sendo. Liberdade é o prazer de me encantar com as fazências que sempre alimento com a vontade aprender.

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Nós: Fale-nos um pouco de si apresentando-se aos nossos leitores

Paulo Gaspar Ferreira: Sempre me deixei encantar por olhar as coisas belas. A In-Libris é o modo de as fazer. Do livro antigo à fotografia, da agricultura à escrita, da música à natureza, sempre cuidei de fazer o que vou sendo. Liberdade é o prazer de me encantar com as fazências que sempre alimento com a vontade aprender.

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Nós: Fale-nos um pouco sobre o projeto, como começou, como surgiu a ideia.

Paulo Gaspar Ferreira: A circunstância e alguma sorte me fizeram deparar com a possibilidade de adquirir uma velha oficina de encadernação do séc. XIX. Sem saber bem o que faria com ela não resisti dedicando-me de imediato ao seu transporte e instalação.

Percebi assim que esta também era a minha praia. A familiaridade que logo senti, transportando-me às antigas oficinas da Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis onde aprendi com grandes mestres alguns dos processos que compunham a “Divina Arte Negra” modernamente conhecida por Tipografia.

Percebi que a encadernação, em Portugal e salvo raras excepções, se tinha deixado “cristalizar” no séc XIX quando os velhos encadernadores preferiram fechar as suas oficinas à transmissão do conhecimento. Esta prática estendeu-se ao longo de todo o séc. XX tendo encerrado a encadernação num caminho sem grande inovação. Em Portugal contamos pelos dedos de uma ou duas mãos os encadernadores que inovaram técnicas e estéticas contemporâneas.  De uma forma geral, preferiram fechar o que sabiam em oficinas envelhecidas tendo-se dedicado a repetir indefinidamente o que tinham aprendido. Creio que este fenómeno se verifica apenas em Portugal, uma vez que tenho vindo a perceber que em todo o mundo existem expressões e técnicas contemporâneas ligadas a esta arte.

Curiosamente, penso que em nenhuma outra de entre as “Artes Decorativas” se verifica este fechamento. Pelo contrário, verifico que Portugal replicou de modo até muito exuberante no que diz respeito à resposta contemporânea no âmbito alargado dessas chamadas “Artes Decorativas”. São exemplos disto a ourivesaria, a cerâmica, o design de mobiliário, as tapeçarias, o design de moda… onde até estamos habituados a granjear um certo sucesso por esse mundo fora.

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Nós: O facto de terem adquirido uma velha oficina de encadernação do séc XIX, contribui para a formação desse projeto ou foi o inverso? Ou seja, o facto de já terem em mente a promoção desta arte na expressão criativa contemporânea, levou-vos a procurarem um espaço com história?

Paulo Gaspar Ferreira: Como referi tratou-se, aqui, de uma circunstância promovida pela percepção do antigo proprietário que tinha vontade que este conjunto não se desmembrasse. Tinha reunido estas peças (máquinas e ferramentas) e gostaria de continuar a ver a sua oficina viva e em laboração. Um dia entrou em contacto comigo dizendo-me que só a In-Libris o poderia fazer. No princípio a minha reacção foi negativa. Afigurava-se-me uma outra frente de trabalhos. Ao fim de um ano de insistência, claudiquei. Na verdade tinha razão. “Esta oficina tem a sua cara”… e tinha.

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Nós: Numa época em que as tecnologias estão já naturalmente integradas no dia a dia de todos e em especial dos mais jovens, tem sido fácil encontrar jovens interessados em aprender esta arte que recorre ao conhecimento e a técnicas antigas?

Paulo Gaspar Ferreira: A instalação e familiarização tomou cerca de meio ano. Estamos agora a iniciar uma série de “Ateliers” com os quais pretendemos tomar o pulso à coisa. A adesão tem sido muito boa, com pessoas de diversas origens a querer aprender estas artes do livro. São jovens,  pessoas de idade, homens mulheres que pretendem adquirir conhecimentos vários acerca do universo do livro antigo. A casa onde mora esta oficina é uma livraria alfarrabista com mais de 20 anos de existência. O natural envolvimento dos nossos clientes constitui uma população muito diversa e interessada. São bibliófilos todos. Amantes de livros. Médicos, economistas, advogados, engenheiros mas também bibliotecários, arquivistas, conservadores, designers gráficos e fotógrafos aparecem por aqui. A ideia é abrir a “Officina”  à utilização destes e outros frequentadores. Pretendemos desenvolver ideias novas acerca da encadernação. Mais do que uma oficina de encadernação este lugar é um laboratório de ideias.

Claro que neste sentido os jovens têm aqui livre-trânsito. Queremos preservar saberes antigos transmitindo-os. Quanto mais jovens mais longe atiraremos a semente. Esta também é uma maneira de cuidar da cultura.

 

Nós:. Conforme transcrevemos de um texto vosso: “desenvolver aprendizagens próximas ao universo do livro, olhando-o no passado e trabalhando-o no presente, mas também projectando-o no futuro” é, com toda a certeza, um desafio.  Adequar as técnicas antigas utilizadas tradicionalmente nas artes gráficas com as novas tecnologias digitais é um desafio fácil de vencer?

Paulo Gaspar Ferreira: O mais difícil de conseguir é tornar esta ideia saudável do ponto de vista financeiro. No nosso entender a história da encadernação em Portugal tem mais de 100 anos de atraso. Seguramente não será difícil casar técnicas centenárias com tecnologia de ponta. Não se pretende, aqui, confundir conhecimento com soluções económicas, cultura com espectáculo. Queremos sim recuperar tempo perdido, experimentando, errando talvez.

Acreditamos na criatividade como forma de inventar o futuro.

Nós: Ainda é fácil encontrar pessoas que detêm o conhecimento das técnicas artesanais da arte da encadernação artesanal?

Paulo Gaspar Ferreira: Está a ser uma experiência surpreendente ir de encontro aos profissionais que viveram envoltos neste universo. Estão, na sua maior parte, reformados. Mostram-se ávidos por transmitir os segredos mais recônditos da sua profissão. Sabem, também eles, que um dia aprenderam à custa de muito errar, de muito suor, de muito querer. A sua generosidade revela-se, agora, na disponibilidade absoluta para transmitir esta espécie de legado. São eles que sabem que com clara de ovo e vinagre se produz o melhor mordente que o dourador pode ter. São eles que querem, connosco, fazer parte desta história.

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Nós: Quais as principais dificuldades em levar por diante este projeto?

Paulo Gaspar Ferreira: Em tempo de eficácia a todo o preço, o mais difícil é sempre cultivar o espaço do erro. Nenhuma das ideias que fez avançar a humanidade foi impermeável ao engano, à falha.

Cultivamos hoje a devoção do correcto, da perfeição. Esta é a maior dificuldade que têm os fazeres criativos. Perderam o lugar da experimentação.

Sentimos também aqui a pressão da perfeição. Por isso construímos dois caminhos: O laboratório e a oficina. No laboratório experimentamos e erramos. Na oficina aplicamos o que sobra disto tudo: encadernamos por encomenda e ensinamos a coisa certa.

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Nós: Que desafios têm para um futuro breve?

Paulo Gaspar Ferreira: Inventamos desafios todos os dias. Por agora temos em curso uma campanha crowdfunding (https://ppl.com.pt/pernasprandar/in-libris) cujo objectivo é conseguir adquirir uma máquina de gravação laser que nos vai permitir desenvolver ideias inovadoras sobre técnicas e estéticas na arte da encadernação.

Num futuro menos breve gostaríamos de integrar esta experiência complementando a OFFICINA com um projecto de tipografia com caracteres móveis.

Nós: No vosso ponto de vista, de que forma, com este projeto, se incentiva o gosto pelos livros e pela leitura?

Paulo Gaspar Ferreira: Tudo o que se fizer será pouco para incentivar o gosto pelos livros.

Já pela leitura o mesmo se não poderá dizer. Infelizmente lê-se demais. Lê-se muito lixo, publica-se muito lixo e pouca literatura.  Provavelmente nunca se leu tanto na história da humanidade.

A questão está na cultura do saber em detrimento do culto do conhecimento. Virtualmente todos sabemos tudo em 3 segundos à distância de um polegar bem treinado. O problema é que poucos sabemos fazer seja o que for.

Restaurar livros antigos, perceber a sua arquitectura, cuidá-los na sua intimidade, como em qualquer arte fazente, lega-nos um capital de conhecimento, de verdade, de cumplicidade com a nossa própria essência.

Nós: Querem deixar alguma mensagem específica aos nossos leitores para que fiquem motivados a interagir com o vosso projeto, a deixarem fluir a inspiração artística, a gostar mais de livros e de leitura?

Paulo Gaspar Ferreira: A nossa casa é de portas abertas. Estamos aqui:

In-Libris
Rua do Carvalhido, 194
4250-101 porto
tel. & fax: ( + 351 ) 223 234 518
mobile: ( + 351 ) 91 999 15 97
mail: officina@in-libris.pt
web: http://www.in-libris.pt
https://www.facebook.com/in-libris-officina-360094241156871/

O brilho que temos nos olhos vem-nos do prazer de transmitir aprendendo, desmultiplicando…

Este é um lugar onde habitam livros antigos e pessoas.

Venham cá e voltamos a falar do assunto.

Paulo Gaspar Ferreira